Por Marcos Vinicius Gomes
É consenso que a criminalidade do Rio de Janeiro associada ao tráfico de drogas cresceu demasiado durante os anos oitenta, inicialmente durante o governo de Leonel Brizola. Atribui-se a ele o desleixo e a conivência que resultaram no aumento do controle dos morros por traficantes que assumiram funções inicialmente atribuídas ao Estado. Mas relacionar o enraizamento da criminalidade carioca diretamente unicamente à administração Brizola no meu entender é precipitado.
O texto de Marques (autor do texto postado abaixo*) associa algumas vezes os traficantes à aristocracia - os traficantes seriam os reis dos morros, ocupando um lugar deixado pelo Estado. Mas nessa ‘aristocracia’ existe um componente que parece estar ligado à idéia de cidade estado, bem anterior aos anos mais recentes. O Rio foi capital do Brasil durante cento e cinqüenta anos, criou-se ali uma sociedade verticalizada com aristocratas, uma pequena burguesia, burocratas, homens livres e escravos.
Com o fim do império e da escravidão já um ano antes, a cidade transformou-se em metrópole na virada do século com obras de infra-estrutura, saneamento. Com o Estado Novo de Vargas ainda prevalecia um ar aristocrático na cidade, não esta aristocracia formal que conhecemos e que teoricamente acabou no Brasil, mas algo que tem a ver com a mentalidade da população da cidade em si. Além disso, é notório ter sido o Rio o celeiro cultural mais latente do país. O escritor que quisesse fazer sucesso teria que estar no Rio, assim como um cantor, um ator que não fosse nativo dali. O Rio era (e ainda é a porta de entrada nacional, cartão postal ao mundo).
O carioca é orgulhoso de sua cidade, o que não poderia deixar de ser, mas como em outras partes do Brasil o orgulho pode se tornar ufanismo utópico, talvez catastrófico, algo que já vem desde tempos de Cabral e da carta de Pero Vaz de Caminha. Deste ufanismo vem certo cinismo que é notado de tempos em tempos em atitudes que deveriam envergonhar qualquer um. Peguemos as passeatas “classe média alta’ pela paz em Copacabana (ou então na Avenida Paulista em São Paulo) com seus integrantes vestindo branco e soltando balões, muitos deles usuários ‘sociais de drogas que mascaram seus atos de alienação com intenções sublimes e altruístas. São neo-aristocratas da sociedade verticalizada, da carteirada, do argumento ‘sabe com quem está falando? ‘, da cultura do ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
Um outro referencial ‘aristocrático’ do Rio de Janeiro é o carnaval, muitas das vezes maculado com parcerias obscuras de dirigentes de escolas de samba bicheiros e outros contraventores numa harmonia invejável que aglutinam o sonho, a fantasia, a criminalidade e a omissão num só pacote. Carnaval este que para Roberto da Mata carrega algo de catarse, purificador, libertador para aqueles que estavam debaixo da pirâmide aristocrática opressora, verticalizada e escravista da capital da República em tempos antigos.
Quando da mudança da capital para Brasília em 1960, o Rio tem tentado manter a aura de glamour aristocrático que cingiu a cidade desde a chegada de D.João VI no início do século 19. Mas a capital antiga já não conseguiria manter-se no patamar de antes, os burocratas mudaram-se de endereço (que fariam parte de uma ‘aristocracia moderna’), os recursos rarearam, a cidade empobreceu e sem referencial industrial e de prestação de serviços entrou em certo declínio, dependendo apenas do turismo interno e externo, além de sua grande indústria do entretenimento/turismo conhecida como carnaval carioca.
Há indicadores aristocráticos até na polícia do Rio de Janeiro. O exemplo mais notório é o BOPE – batalhão de elite que carrega a pretensão de formar guerreiros urbanos, armados fortemente para defender a sociedade de criminosos perigosos. É mais um dentre outros tantos grupos de elite policial que, numa democracia, reforçam o fator exclusivista da segurança pública, segregacionista, injusta, onde poucos podem usufruir de seu serviço, visto que é de elite. Os recursos para o batalhão são superiores aos grupos policiais ‘comuns’. E onde há exclusão, há a disseminação da política do compadrio, do desrespeito ao mérito e evidente da corrupção.
Voltando ao principal tema, o da violência e de seus atores, tomemos mais uma vez o traficante. Herói de um chão sem lei (sem Estado) arroga e evoca para si o papel de defensor da causa miserável, prestando serviços aos moradores desassistidos destes locais onde impera a lei do mais forte. Autoproclamado líder, assume poderes de déspota, impondo a censura, o terror, a ‘justiça’ paralela. Como príncipes, vivem como sultões num chão de impiedade, às vezes têm laços com políticos, representantes da justiça brasileira, empresários, artistas. Como disse o texto de Marques, são reis nas comunidades, reverenciados por aqueles esquecidos pelo Estado que por sua vez se esqueceu que sua razão de ser é servir o cidadão, independente do quanto de influencia e poder este possa ter.
Evidentemente que na luta contra o tráfico deve-se combatê-lo com as mais eficientes estratégias na busca da extinção da chaga que o comércio de drogas representa à sociedade. A logística, o uso de inteligência são essenciais para o combate aos ‘barões do pó’. Mas, também há que se pensar de modo estrutural, observando-se os vetores que alavancaram este triste capítulo na história do Rio de Janeiro (e também na de outras capitais e cidades brasileiras) sob um olhar crítico histórico-social. Não é pretensão de beletrismo, perfumaria sociológica, mas a análise profunda dos problemas que necessitam ser estudados e combatidos com mais afinco e competência numa cidade (e num país) que irá sediar um evento mundial importante como as Olimpíadas de 2016, evento que necessita de estruturas de segurança bem organizadas. Para isso o Rio precisa se modernizar, a começar pela mentalidade aristocrática que ainda ronda a cidade maravilhosa e seus habitantes cariocas.
*nota do blog
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