Clóvis Barbosa (*)
Em meio a um debate sobre o comportamento dos juízes, quiseram saber se qualificaria como “omissa” a decisão tomada por Pilatos contra Cristo. Repliquei que não. “Desprezível”, foi a resposta, “na acepção mais diminutiva que puder ser atribuída à palavra”. E expliquei por que empregara termo suficientemente carregado de menosprezo e rejeição. Pilatos é asqueroso e repulsivo não por aquilo que o afamou (o suposto ato de abster-se quanto à condenação de Jesus). Não. A conduta que verdadeiramente o realça não é a da neutralidade quanto ao assassinato do redentor, pois ele decidiu. A dramaturgia abjeta, estampada na sujeira moral de lavar as mãos, não implicou uma renúncia à prerrogativa de sentenciar, mas redundou num pronunciamento de submissão à chantagem da ralé farisaica (que insinuara ser a libertação de Cristo um atentado contra a soberania do imperador). E, nisso, o prefeito da Judéia tremeu.
Pensem comigo. Que reação esperar de covardes, ali onde são postos diante dum jogo de sonora inevitabilidade? Gente sem couraça e dinamismo de caráter logo argüi a incompetência para deliberar como válvula de escape. Foi o primeiro recurso de que Pilatos lançou mão. Ao saber que o réu, sobre o qual pesava a imputação de blasfêmia (porquanto se tivesse apresentado como a própria divindade), era egresso da Galiléia, driblou a pressão da turba, declarando que só Herodes podia debruçar-se sobre a suposta infração. Com isso, ainda conseguiu reatar laços com o governante da província vizinha, seu desafeto até então. O desmiolado, porém, ao invés de ater-se ao libelo que os adversários de Jesus irrogavam, armou uma patacoada e fez estridente panavoeiro circense, exigindo de Cristo a realização de milagres, em troca da absolvição. Ante o silêncio do acusado, tomou-o por louco e o devolveu para Pilatos.
Sendo Páscoa, o prefeito partiu para aquilo que, contemporaneamente, chamaríamos “plano b”. Utilizou a tradição de libertar alguém contra quem tivesse sido prolatada pena capital. Medroso, em vez de ele próprio emancipar o homem que sabia inocente, apostou naquilo que, estrategicamente, era a logística do comodismo. Pinçou Barrabás, o mais seboso, dentre os delinqüentes presos nas masmorras, pondo-o ao lado do nazareno, a fim de compelir a multidão a ser compassiva. Seria um despautério anistiar o outro, contra quem pesavam medonhos antecedentes. Barrabás era um assassino contumaz, estuprador detestável e ladrão repugnante. Na fragilidade mental que intoxicava o pensamento de Pilatos, o povo nunca optaria por ver solto um câncer dessa dimensão. Mas optou. “Dê-nos Barrabás”. Mas também restava a Pilatos o uso da chantagem. Canalhas sempre se impõem a função enlameada do chantagista.
Mandou trazer água. Nela, pretendeu lavar as mãos do sangue dum justo. “Minhas mãos estão limpas do sangue deste homem”. “Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”, rebateu a multidão. “Ele disse ser o seu rei. Vocês matariam o seu rei?”. “Não temos rei, senão César. Se você não matá-lo, irá pôr-se contra César, nosso único rei”. Foi o quanto bastou. Agora, embora de mãos lavadas, Pilatos viu-se emporcalhado. E, chafurdando, decidiu. Aqui surge o dado que poucos equacionam. Lavar as mãos não foi deixar de decidir. Lavar as mãos traduziu um estelionato litúrgico de auto-justificação, como quem diz que decide contra seus princípios, mas porque as amarras que lhe impuseram não o deixaram solto para decidir como a voz de sua consciência balbuciava. Algo semelhante àquilo que, hoje, alguns poucos juízes com diarréia fazem, laureando marginais sob escusa de serem serviçais da lei.
Não contemporizo. O magistrado que desejar manter as mãos limpas, não as lava com água, mas com princípios. Tércio Ferraz Jr., por exemplo, ensina que sentenças são normas. Ensina, ademais, que sentenças estarão imunizadas, ou seja, respaldadas quando acharem amparo em normas superiores que as sustentem. Nesse sentido, e apesar de uma sentença não poder ser proferida contra a lei, ela também não pode sê-lo para tutelar o mal. Aí, ele se vale da ilustração do homem que constrói uma chaminé, dentro das regras urbanísticas municipais, não porque queira uma chaminé, não porque ela lhe seja realmente útil, mas porque quer projetar sombra sobre a piscina do vizinho. Pela lei, ele estaria alinhado. Mas o judiciário, enfrentando o formalismo da lei (em respeito à justiça, enquanto princípio fundamental do Direito), determina a demolição da chaminé. Decisão contra a lei. Mas a favor do que é bom e correto.
Daí, meu irredutível desprezo por Pilatos. Apegado à formalidade e à insana demagogia dos fariseus, imolou um justo e livrou um pilantra. De mãos “limpas”, mas com o espírito encardido, suicidou-se quatro anos após, chantageado por Calígula. É o fim de juízes cartilaginosos: ser encobertos pelos escombros duma chaminé, destroçada pela justiça do tempo.**
(*) Bacharel em Direito, ex Presidente da OAB/SE, ex Secretário de Estado de Governo de Sergipe e atual Conselheiro do Tribunal de Contas/SE.
(**) Publicado no Jornal da Cidade, Aju-SE, edição de dom 10 e seg 11, 2010, B-9.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
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Um comentário:
Mas, seguindo a lógica do autor, quais princípios Pilatos deveria seguir - os seus de cidadão romano com características distintas do povo hebreu ou os princípios dos hebreus?
Cristo representava em questão toda um povo apátrida, daí seu referencial agregador que extravasou as fronteiras fisicas e do tempo,a coletividade. Usar seu julgamento, sua figura, sua história, sua simbologia humana e divina (que já é inadequado fazê-lo so comparar sua trajetoria com um único indivíduo-Barrabás, personagem secundário)num exercício de contraposição com a justiça brasileira atual com juízes que 'lauream marginais' é, na minha inóqua e leiga opinião, insensato. A menos que eu tenha entendido 'marginais' equivocadamente e o autor tenha usado essa expressão não apenas na referência aos que nos assolam diuturnamente nas esquinas e casas trazendo o fardo do sentimento de injustiça e revolta, mas também se refira aos 'graúdos' que espoliam nossos sonhos e os das futuras gerações em seu próprio proveito - políticos levianos, altos funcionários corruptos, secretários prevaricadores, etc. Estes que poderiam ser associados aos fariseus citados pelo autor, que acusaram a Cristo.O que seria mais adequado, visto que os acusadores de Cristo eram a elite, impunes assim como aquela elite brasileira impune que o autor , aparentemente esqueceu de citar.
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