Clóvis Barbosa (*)
ADOLF EICHMAN. Constrangedor atingir um sono tranqüilo após ler Eichman em Jerusalém, obra da cientista social judia Hannah Arendt. Baseado em recortes biográficos que possuía acerca do oficial do terceiro reich, supus, durante algum tempo, tratar-se de uma fera assustadora, brutal, medonha, violenta. Via-o enquanto um sangüinário, capaz de, com as próprias mãos, extrair escalpos das vítimas. Tal noção, por si só, já o tornava um demônio de fisionomia desgastante para olhos mais sensíveis. Hannah Arendt, porém, extirpou de mim o mito, apavorando-me com a existência de algo capaz de extrapolar o arquétipo de leviatã que projetei para o nazista. Eichman não passava de um burocrata. Espantoso. Por que, então, outorgar a um artífice do carimbo, do clipe e do grampeador a honorável distinção emblemática de o .executor-chefe. do Estado alemão? O impasse resolve-se na esfera psicológica. Psicológica? Mas por que não moral? É possível trabalhar com as duas estruturas na condução do caso. Psicologicamente, a engenharia mental de Eichman estava mapeada segundo ângulos que se projetavam para a direção de um terreno singularmente demarcado: a psicopatia. Psicopatas não são doentes mentais. Tampouco, deficientes mentais. Doença mental é o distúrbio que afeta o elemento psíquico .percepção., a exemplo da esquizofrenia. Esquizofrênicos enxergam coisas que não existem no mundo real. Já a deficiência mental é a enfermidade que alcança o psiquismo no âmbito da .inteligência.. Por exemplo, a tríade oligofrênica: debilidade, imbecilidade e idiotia. Psicopatia, entretanto, não é nem doença, nem deficiência. É uma condição, inata e irreversível. Ser psicopata equipara-se a ser branco, negro ou índio. Assim como um índio nasceu e morrerá índio, um psicopata nasce e morre psicopata.
PIERREPOINT. Essas reflexões me impelem a traçar um paralelo entre Eichman e outro psicopata, semelhantemente sedutor, o inglês Pierrepoint. Com efeito, ambos foram artesãos na escrituração da morte. Segundo consignado pela historiografia, Eichman não estava preocupado com a justiça ou com a injustiça da execução em massa dos judeus. Sua irresignação moral partia do seguinte princípio: liquidar judeus era uma política do Estado ao qual servia. Portanto, operacionalizar o extermínio desse povo implicava tão-somente mais uma etapa da cadeia engrenada por fases matematicamente estabelecidas, a exemplo de fazer a triagem dos que iriam morrer, levá-los aos trens que os transportariam até a zona de execução, cumprir
rigorosamente horários de saída e de chegada das locomotivas, conduzir os condenados a câmaras de gás e, por fim, matá-los. Na mente de Eichman, nada disso consubstanciava crime. A logística da denominada .solução final. assumia cores semelhantes às que permeiam os armários de um escritório de contabilidade. Judeus mortos eram apenas números, vistos sem índice moral. Nesse sentido, Eichman banalizou o mal, transformando a fattispecie numa atividade instrumental. Aniquilar judeus, para Eichman, não era algo mau e, tampouco, bom, mas só uma instância, dentro do processo de sedimentação da filosofia nacional-socialista, de cuja implementação a manutenção de seu status dependia. Da mesma maneira que um comerciante de livros precisava vender mais compêndios para garantir o emprego, Eichman se notabilizou
como workaholic na matança de judeus para ascender na escala de respeitabilidade do establishment nazista. A essa postura, desprovida de sentimento ou valoração, vazia de compaixão, piedade ou até mesmo de raiva, Hannah Arendt chamou .banalização do mal. Alguém, cuja pulsação sangüínea coordene-se pela moralidade afeta à noção de bem e mal, sabe que a ação nazista foi perversa. Essa assertiva não se subordina a digressões para encontrar pálio de validade. Ali onde, todavia, burocratas vêem a trucidação de humanos com indiferença, conferindo-lhes a envergadura de códigos de barra, o mal passa a ser corriqueiro,
trivial, como resolver uma equação de álgebra. Na Grã-Bretanha, Pierrepoint, o legendário carrasco dos 608 enforcados, pouco se importava se matava culpados ou inocentes (vítimas de erros judiciários). Catalogava seu cemitério pessoal meticulosamente num caderno. A função que o Estado lhe deu foi a de levar delinqüentes ao cadafalso. Queria cumprir seu múnus com extremo profissionalismo, procurando ser, inclusive, o mais rápido dentre os colegas de trabalho. Igualmente, banalizou a morte, disfarçando-a atrás da performance institucional.
SIMON WIESENTHAL. O ultimato ao qual pretendemos chegar é lúdico: há os psicopatas, como Eichman e Pierrepoint, para os quais pouco importa se o que fazem é bom ou mau, pois o mal é uma banalidade. Cumprir a formalidade do sistema está acima de aferir o tônus de justiça. Existiu, por outro lado, Simon Wiesenthal. Judeu. Sobrevivente do campo de Mauthausen. Finda a guerra, atribuiu-se a missão de caçar nazistas foragidos. Capturou 1100. Dentre esses, Eichman, em 1960, que estava escondido na Argentina, vivendo sob o nome Ricardo Klement. Wiesenthal passou por cima da lei. Chefiando o Mossad, entrou clandestinamente na Argentina e seqüestrou Eichman, que, levado a Jerusalém, foi julgado, condenado à morte e executado, ainda que, em Israel, não se admitisse a pena capital. Acontece que executar Eichman era bom e justo. Isso distingue psicopatas formalistas dos homens de honra. Triste. Ao preço de banalizar o mal, libertaram Abdelmassih, facínora que abusou de dezenas de pacientes. Afinal de contas, a formalidade da lei o autorizava. Libertar Abdelmassih é ver suas vítimas como cifras. Seqüestrar Eichman foi ver suas vítimas como almas. As mesmas que Pierrepoint fazia questão de lavar, após a execução. Sinceramente, entre a toxicidade de uma lei gasosa e a grandeza salutar de para ela fechar os olhos em busca de justiça, incluo-me no plantel de Wiesenthal. Para fraturar o pescoço de um nazista, entre a segunda e terceira vértebras, é lícito olvidar a lei que o anistia. **
(*) Bacharel em Direito, ex Presidente da OAB/SE, ex Secretário de Estado de Governo de Sergipe e atual Conselheiro do Tribunal de Contas/SE.
(**)Texto publicado no Jornal da Cidade, Aju-SE, dom 3 e seg 4, janeiro de 2010.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
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