Por Paulo Márcio*
Tornou-se cada vez mais comum, nos dias que correm, assistirmos à execração pública de pessoas até então tidas como moralmente idôneas, honradas, acima de qualquer suspeita. Assim, de uma hora para outra, o indivíduo antes ungido com o óleo da moralidade passa a ser pichado com a graxa da indecência, da infâmia, da desonestidade. Imediatamente estampa-se-lhe na testa, sem apelo, o selo da imoralidade. Seus amigos logo se afastam; sua família, humilhada, esconde-se, e ele, centro de todas as atenções, debate-se como animal assustado, que intui a morte aproximar-se nos corredores sombrios do matadouro. Há pouco que fazer nessas horas, na medida em que o primeiro julgamento é sempre moral e, por isso mesmo, sumário, daí a celeridade do rito e a certeza da condenação. Ademais, temerosos da ira da opinião pública – este ente tão perverso e por vezes injusto -, nessa fase poucos se arriscam a defendê-lo, e, quando o fazem, quase sempre agem movidos por interesses inconfessáveis, embora ouçam, na câmara secreta de sua consciência, uma voz que lhes alerta sobre o erro e a insensatez de abraçar uma causa que vai de encontro aos altaneiros valores da sociedade.
No âmbito de todos os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) vem ganhando força um movimento que pugna pela moralidade administrativa. Tal movimento assemelha-se a uma onda, mais do que isso, a um tsunami que percorre silencioso os bastidores do poder e, subitaneamente, invade as praias atrativas, tranquilas e paradisíacas da corrupção, do crime organizado e da impunidade, provocando alvoroço, medo, paralisia e muita indignação naqueles que, acostumados ao prazer e ao deleite proporcionados pelo dinheiro público desviado, ignoram que a principal característica da realidade é a própria impermanência... E como nada há de durar para sempre, é no bojo das constantes e efervescentes transformações sociais que novos valores surgem e afirmam-se, destronando pouco a pouco antigas e nefandas práticas ainda encontradiças em nosso meio social.
A moral não é monopólio de nenhum povo, de nenhum partido político, de nenhum grupo religioso, de nenhuma categoria profissional, mas uma conquista, um valor, um ideal que pode e deve ser perseguido e alcançado por todo e qualquer indivíduo participante da vida gregária, na medida em que é um produto cultural relativizado no tempo e no espaço, cuja validade só se pode observar e aferir nos relacionamentos interpessoais, no trato com a coisa pública e na capacidade de servir e ser útil ao grupo social no qual o indivíduo está inserido.
Assim, não basta ao indivíduo inflar os pulmões e bradar aos quatro cantos que é honesto, moral, decente, para que seja reconhecido como tal, sobretudo quando os fatos e as circunstâncias dizem exatamente o contrário. Esse tipo de comportamento, aliás, quase sempre seguido de ataques furiosos e veementes a outros indivíduos, além de soar arrogante e inadequada, geralmente revela um conflito psicológico do qual o sujeito é portador. Não raro, trata-se de uma clara projeção psicológica, mecanismo mediante o qual o indivíduo projeta no outro aquelas características que rejeita em si próprio, características essas trancafiadas nos porões do seu inconsciente e transferidas amiúde para este ou aquele alvo, contra quem lança toda sorte de impropérios e acusações levianas sem perceber que na verdade é ele próprio quem, inconscientemente, coloca-se na alça de mira de sua própria fúria e indignação. Daí H.G. Wells ter afirmado que “indignação moral é inveja com auréola”.
Convém, portanto, pôr as barbas de molho diante daqueles que se arvoram na condição de “seres morais”. Primeiro, porque a moralidade não se resume a uma questão de retórica; antes constitui uma postura em face dos desafios impostos pela vida, sobremaneira quando o indivíduo é colocado diante de facilidades que lhe despertam interesses egoístas e pouco nobres. Segundo, porquanto ela não é característica inata, mas um apanágio do indivíduo que logrou alcançar um nível consciencial que lhe permite discernir o certo e o errado, o bem e o mal – abstraído qualquer maniqueísmo -, e fazer sua escolha livremente, sempre de forma ética, construtiva e edificante.
Mas, como diferenciar o “ser moral” do “indivíduo imoral”? Seria isso possível? Bem, é óbvio que não existe fórmula ou método infalível para esse mister. Jesus Cristo, no entanto, vaticinou que podemos reconhecer a árvore pelos frutos. Assim, se a árvore for boa, dará bons frutos; sendo má, dará maus frutos. Portanto, para o Mestre Nazareno, desde que não possamos sondar os aspectos subjetivos do indivíduo, cabe-nos recorrer ao exame de suas obras, ações e tantas outras realizações externas, de maneira que logremos, a partir do estudo dos aspectos exteriores, aferir, ainda que parcialmente, as qualidades morais daqueles que nos circundam e com quem interagimos.
O místico indiano Bhagwa Shree Rajneesh, mais conhecido como Osho, parte de uma premissa bem diferente, qual seja, a de que a moralidade, sendo tão-somente um substituto pobre da religião dos buda – fundada no desapego e na compaixão -, possui um caráter puramente utilitário, permitindo apenas que as pessoas convivam umas com as outras sem se autodestruírem. Nega, por conseguinte, a existência do homem moral, afirmando que “os moralistas não são realmente morais – eles estão vivendo uma vida dupla: na superfície, morais, mas, na realidade, tão imorais quanto qualquer outra pessoa ou até mesmo mais. Talvez a moralidade deles esteja presente para esconder suas atividades ilegais. E todos parecem estar no mesmo barco. Do mais baixo trabalhador ao homem que detém o posto mais alto, o primeiro-ministro ou o presidente do país, parece que todos estão no mesmo barco.”
Osho é ainda mais radical ao asseverar: “Parece que um homem só é moral até ser capturado. Assim, a diferença entre o moral e o imoral é somente esta: de ser ou não capturado”. E para não ser capturado – complementamos -, o homem não deve jamais contar com a sorte ou com a impunidade, mas abster-se da prática do ato infame quando a tentação bater-lhe à porta, recorrendo a Deus e à Consciência a fim de que se mantenha sempre ético, honrado, digno e moral.
*Paulo Márcio é delegado de Polícia Civil, graduado em Direito (UFS), especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública (UFS), especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (Fa-Se) e colunista do Universo Politico.com/Contato: paulomarcioramos@oi.com.br
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Um comentário:
Esta questão de opinião pública 'por vezes injusta' remonta à frase - "A mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer séria". Se a questão do julgamento moral está intrinsecamente ligada ao conceito coletivo sobre determinada pessoa ou ato, como julgar a ética e a moral de modo imparcial em determinados casos, como os que envolvem quebra de tabus, corrupção de políticos ou funcionários públicos,favorecimentos a empresários, lobbies, etc, que tem grande apelo frente à opinião pública? Talvez uma 'ética universal'pudesse sanar estes desajustes, mas aonde podemos encontrá-la?
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