Teófilo, da
última vez em que nos vimos tu, pausadamente, disseste-me citando Sêneca:
“Somos todos perversos, o que um reprova no outro ele o achará em seu próprio
peito.” E discorrestes sobre a fragilidade do homem no seu aspecto moral. No
seu discurso havia o sentimento de pesar pela comovente condição humana. Em sua
pungente oração, referindo-se aos que se julgam superiores no afã de infringir
desmedida penitência a quem lhe está à mercê, disseste-me: “A árvore quando
está sendo cortada observa, com tristeza, que o cabo do machado é de madeira.”
Alguns dias
depois da tua visita no meu cárcere. Tive a oportunidade de visualizar uma
arena jurídica onde tese e antítese digladiavam-se. E era necessário. Uma parte
evocava uma vida que se perdera e a outra parte uma vida que se perdia, momento
em que absorveu a outra. É desse embate jurídico – quando leal – que se compõe
a síntese, que nutre o Estado de direito, alma sublime da democracia.
Lá,
fascinei-me com a performance de um
homem de leis do qual o seu mestre, amigo Teófilo, pode ter sido um simples
aluno. O seu arrebatamento monopolizava os sentidos, em seu ardor parecia
personificar as ciências. Mas, como ninguém é perfeito, só incorreu no pecado -
por um momento – da linguagem densa como as águas do rio Estige da mitologia
grega. Talvez tenha se deixado levar pelo orgulho, “seduzido por uma razão”.
Lembro-me de Charbonneau, que lemos juntos: “A razão humana é oscilante, é bela
e ao mesmo tempo perniciosa, porque tem o privilégio de enganar, de mentir, de iludir,
de fazer o homem se perder no Dédalo de uma consciência falsa. Ela balança
entre a revelação e o disfarce”.
No entanto
depois vi no orador uma sanha niilista direcionada à personalidade da pessoa
alvo, cético quanto a sequer um vislumbre de qualidade moral nela – uma
impropriedade, a meu ver. Era quase um ser divino querendo oferecer-lhe uma
catarse. Confesso-te, amigo: temi um pouco por ela – a pessoa alvo. Pensei:
“Vai subjugá-la com tamanha obstinação.”
Mas,
felizmente, convenceu a quem queria não a quem realmente importava: a pessoa alvo.
Se tivesse conseguido confundi-la, ai sim, teria conseguido imprimir a sua
marca estigmatizadora de forma permanente. Não de modo formal, na efemeridade
das palavras ou nos anos perecíveis da sentença, mas na perenidade da alma.
Para o infeliz que estava na berlinda ele teria sido um verdugo espiritual,
quem sabe até desses que, no fórum da sua consciência, já tenha condenado a si
próprio.
Teófilo, eu
li que as muitas letras, às vezes, nos fazem delirar e eu como sou apenas um
leigo cansei-me um pouco de tudo isso, até mesmo – perdoe-me, de ti. Por isso
vou preferir o confinamento de simples oblato e, nessa busca de uma razão para
os meus insignificantes dias, recitar o poeta Agostinho: “Senhor, Tu nos
fizestes para Ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar, em Ti,
descanso.”
Alberto
Magalhães Carneiro
Teófilo: um
amigo imaginário/Tese e antítese: acusação e defesa/Estige: o rio do inferno,
na mitologia grega/ Sanha niilista: defesa da teoria da negação de forma
ferrenha/verdugo: carrasco/Paul Eugène Charbonneau: teólogo e escritor
canadense/Catarse: purgação, purificação/oblato: leigo que oferecia seus
serviços a uma ordem religiosa/o referido homem de leis: Promotor de Justiça.