sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O sagrado e a Rede Globo

Marcos Vinicius Gomes*

A Rede Globo tem veiculado ultimamente alguns vídeos institucionais intitulados 'O Sagrado'. Nestes vídeos são abordados temas que com frequência vêm ao foco em debates sobre a condição humana atual. Um destes vídeos desta série, trata do excessivo zelo em busca do corpo perfeito, prática contemporânea inclusive difundida e estimulada pelos meios de comunicação. Nesta propaganda, o locutor propõe a reflexão do assunto enfocando que atualmente as pessoas estão buscando apenas o aprimoramento estético e deixando a procura por valores mais duradores e transcendentais (transcendental é tudo aquilo que antecede ou ultrapassa qualquer experiência). Enquanto o locutor fala, são mostradas cenas de pessoas fazendo exercícios em academias, ou então buscando serviços estéticos variados. Por fim aparece um representante da Igreja Católica reiterando a fala do locutor sobre o tema abordado, num discurso assumidamente religioso. Nas outras propagandas da série 'O Sagrado' outros religiosos de diversas crenças colaboram com seus pontos de vista sobre a temática abordada, sempre com uma perspectiva de resgate de valores morais em falta nos dias atuais, evidentemente embasados, em seus comentários, nos dogmas das religiões que professam. No final de cada vídeo aparece a trindade global em seus logotipos - Rede Globo, Fundação Roberto Marinho e canal Futura.

Soa estranho uma emissora como a Rede Globo vir a público com estas investidas metafísicas (metafísica aqui pode ser classificada como 'ramo da filosofia que busca explicar a essência do ser', ou então 'qualquer especulação filosófica em geral'). Isso porque sabe-se que a emissora sempre foi criticada - tanto pelo lado conservador quanto pelo progressivo , passando pelo moderado de nossa sociedade - de ser 'veículo desvirtuador' desta mesma sociedade juntamente com seus valores.

Não quero associar a expressão 'veículo desvirtuador' sob a conotação religiosa, apesar de ter sido uma propaganda com conotação religiosa o motivador deste texto. Excessos existiram na história da televisão e a Globo teve sua contribuição neste quesito. Porém, a contribuição para os 'desvirtuamentos' desta sociedade, vai além de estereótipos ou de preconceitos de vários tipos presenciados na programação da emissora carioca. Assim a contribuição social negativa da Rede Globo ultrapassa o discurso distorcido das novelas das oito dos anos noventa, onde as personagens femininas nordestinas eram assumidamente 'assanhadas', ultrapassa os ícones globais como Xuxa e sua 'filha de proveta multimídia' Sacha, que teve seu nascimento mostrado em rede nacional e vai muito além dos seriados juvenis com adolescentes que tem como dilema máximo de suas vidas não saber qual garota escolher para namorar. A Globo pode ser desvirtuadora em alguns aspectos sim, mas o é com prioridade no campo político e institucional.

Isso porque a Rede Globo, no quesito político apoiou o regime militar criado em 1964 até o fim, tirando grande proveito da permanência dos militares no poder. Manipulou em 1982 a divulgação dos resultados das eleições para governador do Rio de Janeiro, numa clara tentativa de prejudicar Leonel Brizola. A emissora deu uma 'força' na trajetória de Fernando Collor de Mello, tendo antes de sua eleição manipulado a edição de um debate para presidência em 1989 a favor de Collor em detrimento ao candidato Lula. Também há o caso da Nec, empresa comprada por Roberto Marinho nos anos oitenta a 'preço de banana' após uma jogada política patrocinada pelo amigo e então Ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães.

Qual a relação então entre as propagandas institucionais 'O Sagrado' com a trajetória da Rede Globo de escândalos, manipulações, uso indevido dos veículos que é dona para forjar tendências? Tem uma forte relação, porque como emissora representante do conservadorismo, usa todos os meios disponíveis para atender os interesses do establishment ('grupo dominante'). Após quinhentos anos no poder, as forças conservadoras temem por ter que esperar mais um período de ostracismo para uma eventual volta. Enquanto não conseguem, apelam para todo tipo de argumentos - válidos e não válidos - para difundir suas idéias. E aqui entra o discurso religioso-transcendental, estratégia comum já vista na história recente do país. Basta recordarmos que no período pré-golpe de 64, grupos religiosos liderados por 'senhoras de família' da sociedade paulistana saíram pelas ruas de São Paulo na 'Marcha da Família com Deus pela Liberdade', carregando faixas com frases do tipo 'Senhora Aparecida iluminai os reacionários'. O tom religioso associado à política era a regra e tal marcha foi, para os militares e seus aliados, a 'autorização popular' para o regime que viria trazendo junto o atraso político, social e econômico.

Esta abordagem religiosa de temas contemporâneos com seus problemas e desafios soa como uma tentativa renovada de 'distinção política' aos olhos da opinião pública como vista no pré-golpe de 1964. Ao mostrar zelo comunitário, apontando as não-virtudes da sociedade contemporânea num enfoque religioso, a Rede Globo quer mesmo desmembrar-se de sua parcela de responsabilidades para com esta mesma sociedade a qual critica. Focando para o lado transcendental, a emissora esvazia-se dos vícios por ela patrocinados nestes anos todos, esperando que a sociedade veja neste ato a sublimação de uma parcela da elite histórica a qual ela representa. Uma elite que, apesar de mudados os sistemas políticos e econômicos nacionais, continua sua articulação para manter o Brasil a seu serviço, nem que isso custe o retorno ao atraso. Atraso contra o qual lutamos tanto e continuamos lutando dia e noite para apagá-lo de nossas trajetórias.

*Marcos Vinicius Gomes é Professor de Língua portuguesa e inglesa, em São Paulo.

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